O SEGURO-GARANTIA NA NOVA LEI DE LICITAÇÕES
1. Introdução
As contratações públicas são permeadas por diversos instrumentos que buscam atribuir segurança à Administração. Pode-se aludir aos requisitos de habilitação, cujo objetivo é garantir que o contratado detenha a expertise, a solvência e a regularidade mínima à execução do contrato.
Contudo, em alguns casos, esse núcleo é insuficiente e a segurança na contratação depende de mecanismos adicionais, como por exemplo as garantias contratuais.
A Lei 14.133 trouxe inovações relevantes acerca das garantias prestadas pelo particular em face da contratação administrativa. Além de novas alíquotas, a modalidade seguro-garantia passa a contemplar a possibilidade de a seguradora assumir a execução do contrato em circunstâncias específicas.
2. Garantia da proposta x garantias contratuais.
Segundo a Lei 14.133, a Administração poderá exigir garantia acerca da execução do contrato (art. 96) ou garantia da proposta (art. 58).
A garantia da proposta pode ser exigida como requisito de pré habilitação, em até 1% do valor do estimado para a contratação, inclusive para a modalidade pregão (o que é vedado pelo art. 5º, inc. I, da Lei 10.520).
O art. 58 da Lei 14.133 está sendo extremamente criticado, ao ponto da doutrina apontar para sua inconstitucionalidade.1
3. Seguro-garantia na Lei 14.133
O seguro-garantia consiste em contrato firmado entre o particular contratado e uma instituição seguradora disposta a arcar com os riscos de eventual inadimplemento.2 Sua função é resguardar a satisfação de eventual crédito da Administração decorrente de alguma infração cometida pelo contratado.
3.1. As novas alíquotas para instituição do seguro
A Lei 8.666 estabelece que a garantia contratual pode ser exigida em até 5% do valor do contrato (art. 56, §2º). Nas contratações de grande vulto autoriza-se exigir garantia de 10% do valor do contrato (art. 56, §3º).
A Lei 14.133 altera esses percentuais. Como regra geral, nas contratações ordinárias o percentual será 5%, podendo ser chegar a 10% caso haja complexidade técnica ou riscos que demandem uma garantia mais substancial.
Já nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, assim considerada como aquelas cujo valor supera 200 milhões de reais (art. 6º, inc. XXII), poderá ser exigida até 30% para fins de garantia, sendo obrigatório nesse caso a apresentação sob forma de seguro-garantia (art. 99).
3.2. Os fornecimentos de grande vulto
A exigência de garantia que contemple 30% do valor do contrato é restrita às contratações de obras e serviços de engenharia. É o que se extrai do art. 99 da nova Lei, que não dispõe sobre contratações de fornecimentos de grande vulto.
Assim, mesmo que o fornecimento contemple um valor considerável (acima de 200 milhões de reais), não será cabível estipular garantia para além dos percentuais contidos no art. 98 (5% ou 10%).
3.3. A análise casuística
A redação do art. 96 da Lei 14.133 deixa claro que a imposição de garantia contratual deverá ser feita “em cada caso”. Na fase de planejamento deverá ser avaliada a pertinência da garantia, sempre a partir de justificativas razoáveis e proporcionais. Afinal, como dito acima, a Administração já se cerca de outros instrumentos que agregam segurança à contratação, de modo que a instituição de garantia sempre será um dado acidental.
Nesse sentido, a adoção de minutas padronizadas, pareceres referenciais ou qualquer outro ato normativo de cunho geral e abstrato será insuficiente para legitimar exigência de garantia.
3.4. A renovação da garantia
O prazo de vigência da apólice deve ser igual ou superior ao prazo de vigência do contrato (art. 97, inc. I, da Lei 14.133). O objetivo é garantir que toda a relação contratual esteja coberta pelo seguro-garantia, de modo que eventuais alterações na vigência do contrato principal deverão ser incorporados à apólice, mediante endosso da seguradora.
Outra circunstância bastante comum e que pode demandar a renovação da apólice diz respeito à incompatibilidade entre o prazo de vigência do contrato e os modelos de apólices disponíveis no mercado.
Lembre-se que as seguradoras atuam em mercado regulado pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, de modo que questões como prazo de vigência, carência ou condições de pagamento tendem a ser padronizados. Logo, pode haver situações em que o prazo de vigência do contrato é superior ao previsto na apólice, o que exigirá a renovação da apólice3 para acobertar toda a relação contratual.
Em caso de suspensão do contrato por ordem ou inadimplemento da Administração, o contratado ficará liberado da obrigação de renovar a garantia ou de endossar a apólice de seguro até a ordem de reinício da execução ou o adimplemento pela Administração (art. 96, §2º, da Lei 14.133).
3.5. A inadimplência do segurado
A eventual inadimplência do segurado/contratado em relação ao pagamento do prêmio não interfere na garantia prestada (art. 97, inc. II, da Lei 14.133). Ocorrendo o sinistro, a seguradora se encontrará obrigada perante a Administração, nos termos da apólice, independentemente de qualquer exceção oponível em face do segurado/contratado.
4. A “cláusula de retomada”
A grande inovação reside na previsão de “cláusula de retomada”. Segundo o art. 102 da Lei 14.133, nas contratações de obras e serviços de engenharia o edital poderá prever a faculdade de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato.
A figura se aproxima da previsão contida no art. 27-A da Lei 8.987 (Lei da Concessão de Serviço Público), que permite ao poder concedente autorizar a assunção do controle ou da administração temporária da concessionária, pelos respectivos financiadores e garantidores, para o fim de assegurar a continuidade da prestação dos serviços.
4.1. A imprecisão do termo
A expressão “cláusula de retomada”, empregada na Lei 14.133, é imprecisa. A seguradora não “retoma” uma obrigação que originariamente era sua. Rigorosamente, a relação jurídica em que a seguradora se insere ocorre nos limites do contrato de seguro.
Assim, é tecnicamente mais adequado referir ao instituto como “cláusula de assunção do contrato”, tal como empregado pela bibliografia especializada.4
4.2. Hipótese de cabimento
Apesar de o art. 102 fazer referência genericamente a obras e serviços de engenharia, a cláusula de assunção do contrato deve ser prevista apenas quando a contratação for considerada de grande vulto.
É o que se extrai da leitura conjunta dos artigos 102 e 99 da Lei 14.133, que relaciona o instituto às garantias prestadas na ordem de 30%. Tanto é assim que o entendimento doutrinário aponta que “quando for adotada a solução prevista no art. 102 o valor do seguro será usualmente de trinta por cento.”5
4.3. As prerrogativas da seguradora interveniente
A previsão de cláusula de assunção impõe uma participação ativa da seguradora na relação contratual principal. A assinatura do contrato administrativo e eventuais aditivos contará com a participação da seguradora, na condição de interveniente anuente (art. 99, inc. I, da Lei 14.133).
Além disso, a seguradora terá acesso às instalações em que for executado o contrato principal, eventuais auditorias técnica e contábil, podendo acompanhar a execução do contrato principal, além de requerer esclarecimentos ao responsável técnico pelo empreendimento.
4.4. A natureza opcional
A incursão no contrato administrativo por parte da seguradora é opcional. Caso haja interesse, ela poderá subcontratar integralmente a execução da prestação ou pagar a importância assegurada na apólice (art. 102, par. único, da Lei 14.133).
Existem críticas sobre esse modelo facultativo. 6 Contudo, seria despropositado obrigar a seguradora ocupar uma posição contratual sem qualquer elemento volitivo e de forma totalmente impositiva. A seguradora poderia ser compelida a exercer uma atividade econômica sem qualquer afinidade com o seu objeto social, representando, em última análise, uma violação inconstitucional à livre iniciativa (art. 170 da Constituição).
4.5. Potenciais efeitos econômicos indesejáveis
A instituição de garantias onera a execução do contrato, na medida em que o particular se vê compelido a dispender recursos antes de iniciar a execução do objeto – mesmo já tendo comprovado sua solvência durante a fase de habilitação do certame.
Logo, quando a garantia contempla valores substanciais e uma obrigação economicamente relevante para as seguradoras – tal como ocorre na previsão da cláusula de assunção – o custo da operação tende a se elevar drasticamente.
O aumento no custo da apólice pode tornar desinteressante a execução de um contrato, afastando assim potenciais interessados e diminuindo a competitividade no certame.
Em última análise, a elevação desses custos é incorporada no preço da proposta, aumentando o dispêndio de recursos públicos empregados na contratação.
Por esse motivo, a previsão da cláusula de assunção deve ser precedida de um acurado processo de planejamento que considere a real pertinência dessa forma de garantia.
5. Conclusão
As inovações na disciplina do seguro-garantia são significativas e demandarão um esforço doutrinário relevante na construção de soluções para questões tangenciadas no âmbito da antiga legislação.
Assim se passa, por exemplo, com a cláusula de assunção do contrato. Esse mecanismo insere um novo paradigma acerca da alteração subjetiva do contrato administrativo além de suscitar dúvidas quanto a sua aplicação prática.
Como aplicar a disciplina sancionatória em face da seguradora interveniente? A interveniente está obrigada a manter as condições de habilitação prevista no art. 92, inc. XVI, da Lei 14.133 ? Como fica a equação econômico-financeira do contrato, o direito a eventual reajuste e a responsabilidade por defeitos na orçamentação da proposta?
Algumas dessas questões serão objeto de reflexão na segunda parte deste texto, que será publicado na próxima edição do Informativo Eletrônico.